sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A cidade como negócio

Vinícius Damazio

Jogos Mundiais Militares Rio 2011, Copa das Confederações 2013, Copa do Mundo 2014, Jogos Olímpicos Rio 2016. A cadeia de acontecimentos dos chamados Megaeventos Esportivos trouxe à tona a discussão em torno do modelo excludente de política urbana implementada no Rio de Janeiro para construir a imagem de cidade global.

Sede dos Jogos Pan-Americanos de 2007, a cidade herdou um patrimônio esportivo avaliado em mais de U$ 1 bilhão. Porém, a experiência revelou uma gestão pública incapaz de agir de modo democrático e transparente, resultando em equipamentos abandonados e nenhum retorno ao contribuinte.

Na esteira desses acontecimentos, a aluna de Jornalismo do Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/ UFF) Paula Paiva adotou a habitação como tema de sua monografia: Do "Ponha-se na Rua" ao "Sai do Morro Hoje", ou, como decifra o subtítulo, Das raízes históricas das remoções à construção da "cidade olímpica".

"A minha ideia inicial era abordar tudo, um histórico de políticas públicas para habitação, o que diz a Constituição sobre direito à moradia, qual o déficit do país, o que esse déficit causa, o descaso do governo, o fetiche da casa própria no Brasil, e ainda trazer histórias de pessoas que são afetadas", explica a estudante, que começou a participar em 2012 do Comitê Popular Rio para Copa e Olimpíadas, organização civil que reúne pessoas interessadas em discutir as preparações para os megaeventos.

A participação no Comitê Popular Rio para Copa e Olimpíadas colocou-a em contato com os moradores de comunidades que estavam sendo removidos ou ameaçados de remoção, como Arroio Pavuna e Vila Autódromo, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio. 

No Rio de Janeiro, já foram completamente removidas as comunidades Favela do Sambódromo, Vila das Torres, em Madureira, Largo do Campinho, em Campinho, Recreio 2 e Restinga, no Recreio dos Bandeirantes.


Processo histórico


Apesar de estar sendo discutida hoje, a cidade sendo tratada como negócio não é algo atual. A política das remoções data da chegada da Família Real, em 1808, quando 10 mil casas foram pintadas com as letras "PR", de Príncipe Regente. A prática foi rapidamente apelidada pelos moradores como "Ponha-se na Rua".

A monografia enfileira os acontecimentos: a reforma de Pereira Passos (1902-1906), o Plano Agache em 1930, o Código de Obras de 1937, a construção dos Parques Proletários, a era das remoções na Ditadura Militar (1964-1985) e outros marcos emblemáticos do século passado. 

Já em 2012, as casas a serem removidas são marcadas com as letras "SMH", de Secretaria Municipal de Habitação, já devidamente convertidas pela população por "Sai do Morro Hoje".

Para a jornalista, tanto a raiz das remoções quanto a ação governamental da construção da cidade olímpica se devem à predominância do interesse do capital na construção e ocupação da cidade. "Preferiu-se, e ainda se prefere privilegiar, a especulação imobiliária ao direito à moradia, e, com isso, esses megaeventos só estão reforçando problemas históricos de segregação e desigualdade na cidade", diagnostica Paula.

Os principais focos das remoções hoje são em locais de alta valorização imobiliária, como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes. Dentre as reclamações dos moradores, estão a truculência policial, a falta de informação e participação no processo de remoção e o reassentamento realizado em programas do Minha Casa Minha Vida.

A pesquisa da aluna retrata a ação do governo na Restinga, no Recreio dos Bandeirantes, na Metrô-Mangueira e na Vila Autódromo. Para a pesquisadora, em todos os casos, o morador é tratado como ilegal, independente da situação fundiária, seja usucapião, concessão de uso ou mesmo nenhum título.

"No Brasil, foi construído um ordenamento jurídico que reconhece várias formas de posse e que define instrumentos para seu registro. Por exemplo, no caso da Vila Autódromo, os moradores têm a Concessão de Direito Real de Uso, válida por 99 anos, concedida pelo Estado nos anos 90, e mesmo assim são tratados como invasores", defende.

Para Paula Paiva, a história mais marcante foi a visita a casa de Francisca Melo, 45 anos, ex-moradora da Restinga. Francisca recebeu a estudante na comunidade do Fontela, em Vargem Pequena, onde está morando agora. A casa nova é tão apertada que o filho dorme em uma cama no canto da cozinha. A moradia anterior tinha dois andares e ainda abrigava uma mercearia, fonte de renda perdida pela família. 

"Dona Francisca é uma senhora incrível e de muita sensibilidade. Foi a única que chorou durante a entrevista, foi a que estava externamente mais abalada com tudo o que aconteceu", explica.

No dia 17 de dezembro de 2010, dia da remoção de famílias da comunidade da Restinga, Francisca se acorrentou no portão ao ver uma retroescavadeira em frente a sua casa. Ainda estavam lá cinco microônibus da Guarda Municipal, três microônibus da Polícia Militar, algumas viaturas da Polícia Civil e o Batalhão de Choque. A moradora permaneceu lá das 11h às 16 horas. Ficou em estado de choque e chorou o dia inteiro.

Para quem acompanhou o noticiário das últimas semanas, o cenário do dia da remoção na Restinga lembra rapidamente as manifestações motivadas pelo aumento da tarifa de ônibus. Finalmente a população está conhecendo o estado de sítio que vigora diariamente nas favelas? Paula acredita que sim "só que repetindo o que vem sendo dito esses dias: 'nas favelas as balas não são de borracha'", conclui a jornalista, sem ter a certeza de que a indignação das pessoas pelos moradores das favelas seria tão grande quanto pelos feridos das manifestações.

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