domingo, 27 de novembro de 2011

A Primavera Portuguesa

Monografia de Isabela Carvalho analisa cobertura do Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil sobre a Revolução dos Cravos, que livrou Portugal da ditadura salazarista em 1974  


Por Isabel Muniz

“Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim”

Em 1975, a música Tanto Mar de Chico Buarque é censurada pela ditadura militar no Brasil. A canção remete a uma carta escrita por um português no Brasil a seu conterrâneo em Portugal, em que festeja a Revolução dos Cravos no seu país de origem. Transformada em epígrafe do Trabalho de Conclusão de Curso da aluna de Jornalismo da UFF  Isabela Carvalho, a monografia aborda como o Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo noticiaram o término da ditadura salazarista enquanto o Brasil vivia o seu período de arbítrio e censura. O trabalho teve a orientação do professor Alceste Pinheiro. Isabela conta como surgiu o interesse pelo tema:

“Através de um convênio da UFF com universidades portuguesas, estudei em Lisboa por seis meses em 2008. Em 2009, ano em que terminava a faculdade, a revolução completava 35 anos. Uni o interesse por temas internacionais àquela experiência pessoal, uma vez que queria fazer alguma coisa que refletisse, de certa forma, minhas vivências dentro e fora da universidade. Neste ponto, ter um orientador com que você possa dialogar é fundamental.”

O também chamado “25 de abril” pôs fim ao regime autoritário de Antônio de Oliveira Salazar, que colocou Portugal em um período de estagnação e isolamento dos demais países. A ditadura portuguesa, também conhecida como Estado Novo, durou quase meio século tendo fim somente em 1974. A revolução foi marcada pela não violência, e em 17 horas o governo foi derrubado. Os portugueses participaram de maneira ativa, com pessoas marchando de forma pacífica pelas ruas de Lisboa com cravos vermelhos nas mãos.

“Existem muitas versões sobre o motivo de o cravo ter se tornado símbolo do ‘25 de Abril’. O cravo é uma flor muito comum por lá, inclusive é bastante típico ver pessoas vendendo pelas ruas hoje em dia. Prefiro a versão que diz que uma senhora, talvez florista, colocou a flor na espingarda de um dos soldados, e a cena foi reproduzida por outros soldados e outros civis. Em minha opinião, é a metáfora perfeita. Uma metáfora que reflete o lado pacífico da revolução que tirou os portugueses de um estado de inércia e isolamento que já perdurava por décadas.”
     
As manchetes

A pesquisa de Isabela Carvalho se concentrou nas manchetes do Estadão e do JB. “Na década de 1970, as assinaturas não eram tão comuns e as vendas eram feitas em bancas, de modo que o que mais atraía a atenção do leitor para a notícia eram as manchetes. Era o que faria o leitor se interessar por aquele assunto ou não, comprar aquele jornal ou ignorá-lo”, explica a autora. Para embasar sua análise, Isabela utilizou elementos da Análise do Discurso Francesa, em que investigou as “marcas” presentes nos textos, avaliando a influência da censura e da linha editorial dos jornais.

De acordo com a pesquisa, em ambos os jornais a Revolução dos Cravos teve repercussão com destaque. Porém os títulos eram cautelosos, a fim de evitar qualquer comparação com o período no qual o Brasil vivia. Não eram mencionados termos como “ditadura”, “golpe” ou “revolução”, por exemplo.

Em 1974, o Brasil estava sob o governo do general Ernesto Geisel, que embora considerado menos “linha dura”, ainda exercia censura à imprensa. Nesse contexto de repressão e perseguição aos jornalistas, como o profissional poderia passar uma informação da queda de um regime ditatorial em um país com o qual sempre manteve estreitas relações sem fazer analogias com o momento em que vivia o Brasil? “Na época da ditadura, os jornalistas sabiam que estavam em um contexto de controle e restrições. Então era comum que alguns já soubessem como driblar ou manejar as palavras de modo a não sofrer algum tipo de censura”.

A autora acrescenta ainda outro obstáculo ao jornalista naquele momento histórico: a ideologia do veículo no qual trabalhava. “Sabemos que a imparcialidade é uma utopia e que a subjetividade está presente em qualquer trabalho jornalístico. A percepção da realidade do profissional, portanto, vai influir no trabalho final e em sua maneira de escrever, apurar. Em assuntos delicados, não será diferente, sobretudo se já existe a consciência da inclinação ideológica de certos veículos”.

Nesse contexto, o jornalista acaba fazendo autocensura (de modo inconsciente ou não) do seu trabalho. Mas isso não acontece só em períodos repressivos, pois assuntos controversos aparecem no cotidiano jornalístico, envolvendo vários interesses. “Uma coisa que observei enquanto fazia a pesquisa para a monografia é que não existia um comportamento, digamos assim, padrão. O profissional - sobretudo o bom profissional - desenvolvia sua própria maneira de trabalhar dentro das condições que lhe eram oferecidas, com 'instrumentos' dos mais diversos. E, agora pensando, talvez haja algumas semelhanças com o que seguimos fazendo até hoje, seja onde for”.

Uma relação especial
Isabela Carvalho mantém uma relação especial com o país luso, o que influenciou a escolha do assunto central da monografia. “A minha experiência em Portugal foi fundamental, tanto na escolha do tema quanto no desenvolvimento. Tenho um carinho enorme por Portugal e fazer um trabalho que me aproximava daquele país foi, acima de tudo, um prazer. Além disso, fiz amizade com portugueses que me ajudaram a buscar fontes. Também tive um orientador que esteve presente quando precisei e que me ajudou muito a fazer um trabalho coeso. Não tenho a menor dúvida de que hoje o meu gosto pela pesquisa tem a ver com o fato de ter feito uma monografia sobre um tema que me interessava (em diversos sentidos) com um professor que me passava confiança”, comenta. 

Isabela nunca trabalhou em redação. Fez estágios durante a faculdade, quase todos na área de assessoria de imprensa. Trabalhou nesse período na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e também escreveu para uma revista online de turismo para pessoas com deficiências em Portugal. Carrega uma trajetória de experiências internacionais. Ela acaba de fazer um mestrado em Comunicação com Fins Sociais na Espanha, com uma dissertação sobre inovação social. Participou de um projeto de cooperação internacional, como coordenadora assistente e relações públicas na Holanda.  Isabela também teve uma curta passagem numa empresa focada em empreendedorismo social em 2010, em Berlim, na Alemanha.


Um comentário:

  1. Este é daqueles trabalhos que mostram o quanto falta fazer para descobrir o outro. Para mim, como leitor e interessado no tema, faz todo o sentido saber como o Brasil acompanhou esta (nossa) revolução. Ao ler o trabalho da Isabela , que de resto já tinha tido oportunidade, apercebi-me de que essa cobertura foi incompleta, porque desse lado, como aqui, havia interesses políticos em jogo. Mas acima de qualquer conclusão histórica, este trabalho aparentemente simples tem de mostrar a portugueses e brasileiro o quão afastados viviamos e continuamos a viver.
    E quando todos chegarmos a essa conclusão, perceberemos que em vez de estarmos perante uma simples investigação, fomos confrontados com uma questão muito complexa. Uma relação entre dois países que falam a mesma língua, mas que têm vivido de costas voltadas, ao sabor de preconceitos e de vícios instalados.
    Parabéns Isabela!

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